terça-feira, dezembro 12, 2006

Exército da reciclagem



Eles aparecem sem hora marcada. Marcham como se farejassem o ouro nas minas, a comida na mesa, ou a luz inerte em uma escuridão que assola a humanidade. Recolhem, remexem, espalham e chafurdam as sobras. Olham atentos o que procuram, sem desviar o olhar, em uma submissão coerente àquelas encontradas nas grandes empresas. Para os engravatados de Wall Street, a competição se dá entre homens atrás de poder e lucro, inebriantes como uma taça de vinho de francês ou um prozac no fim do dia para aliviar as angústias.

Nos lixões, a competição é feroz. O bicho-homem compete com as gaivotas e urubus que circundam o céu, com os cachorros e gatos, que alucinados tiram o que podem do grande amontoado descarregado todos os dias nos lixões. Há também a competição subterrânea, com as ratazanas que se divertem cavando grandes túneis, e se multiplicam como células em evolução. Já os mosquitos, pernilongos, estes nem se falam. Sugam do bicho-homem, a única coisa que o faz integrante da raça humana, o sangue. Já que nestas condições adversas, não há diferença se ali existe um ser pensante. Será que existem?, perguntaria o filósofo Descartes, vendo tamanha barbaridade.

Com o fechamento dos lixões, esta perversa lógica ainda apropria muito mais do que a integridade, mas também a liberdade daqueles que do lixo vislumbram manter-se em pé. O mesmo exército que invadia os lixões, hoje invade as ruas. Também não escolhem dia, hora e local. Andam praticamente em um mesmo ritmo. Como se precisassem de ajuda para empurrar o que lhes pesa. Param o carrinho na calçada, remexem sacolas, papéis e caixas. Em cima dele colocam papel, papelão, plástico, ou até mesmo, algo que possa usar depois. E assim, usam o lixo como uma possibilidade de se reerguer. Assim, de forma padronizada, um exército de mais de 3,5 mil homens e mulheres invade as ruas de Goiânia atrás de material reciclável.

Luta para reerguer. Munidos de disposição, os catadores ajudam a tirar 50 mil quilos de lixo, dos 33 milhões de quilos produzido por mês em Goiânia. Eles pertencem ao primeiro elo da cadeia da reciclagem, ao extrair dinheiro do que a maioria da população considera sem valor. São destes “restos” que pessoas como Deusdete Jesus da Conceição, 43, precisam para reconstruir a sua identidade. Há menos de duas semanas, ele podia ser visto em um estacionamento, perto do mercado de Campinas em Goiânia. Não na mesma altura das outras pessoas. Mas caído, em meio à sua embriaguez. No início, conseguia bebida alcoólica com quem dividia espaço nas calçadas das ruas. Depois, só consumia quando tinha dinheiro.

Naquelas condições, a única maneira era estender os braços a fim de que alguém pudesse gotejar algumas moedas. A invisibilidade social, seguida da indiferença, o tornavam perante aos que passavam um “ninguém”. Muito diferente do que pensava que seria tratado quando viajou dois dias e meio, quando saiu de Santa Inês no Maranhão para Senador Canedo, município da região metropolitana de Goiânia. Em seus pensamentos durante a longa viagem, viria para trabalhar de servente de pedreiro. Só que quando chegou, há dois meses e meio, descobriu que o primo que lhe daria morada havia se mudado. Às vésperas do natal, a saudade faz o coração apertar um pouco, já que ele nunca deixou de presentear os dois filhos. “Estou juntando um dinheiro para mandar um presente para eles no Natal”.

Com o trabalho de catador espera ganhar uns R$ 200. Esta é a média do que eles ganham. Deste dinheiro ele precisa retirar uma quantia para a água, luz, e para a comida, além do aluguel do carrinho, que deve repassar para a dona do depósito onde fica. É lá, que juntamente com Deusdete, dormem e convivem mais seis catadores de materiais recicláveis. Sem nenhum tipo de vínculo empregatício, Deusdete entrou no ramo de catação pela facilidade que encontrou para ingressar na atividade. Coletar material reciclável não requer nenhum tipo de exigência física e técnica, abrange um mercado dinâmico, além de possuir matéria-prima abundante, ainda que misturada pelo lixo comum.

Como os catadores do lixão, os catadores (ou papeleiros como alguns apelidam) trabalham sem nenhum tipo de proteção. As mãos que remexem os lixos vão nuas. O olfato sente o que os olhos não podem ver. E assim, usando os sentidos, driblam as dificuldades do serviço. E que são muitas. Mesmo com a “sofisticação” adquirida pela indústria da reciclagem, a sua base ainda se serve da degradação humana e o mais revoltante, da privação de liberdade. É mais uma vez a exploração, nas mesmas condições das fábricas do séc XVIII, do início da revolução industrial. De quem vê o ser humano como um objeto, uma máquina a usufruto do capital. Quem dera se Marx estivesse em desuso, como muitos apregoam, mas a sua teoria ainda se adequa em muitos segmentos econômicos. Na indústria do lixo, o capital ainda subjuga uma base composta de muitos “deusdetes”, que encontram na catação a única oportunidade para se levantar.

domingo, dezembro 03, 2006

Escravidão e preconceito

Em ritmo de blues, na voz melosamente triste de Billie Holliday, as árvores balançam como um leve sussurrar. As folhas, agitadas pelo vento, caem cálidas ao encontro do chão. As raízes expostas teimam a agarrar as profundezas. Flores não há. Estas já murcharam em uma primavera adversa. A copa frondosa quer apenas chamar a atenção dos céus. Raios e trovões, ao perceber a intenção, não se furtam em repreender o desatino. A escuridão toma conta, mas alguns raios de luz tentam compreender a estupidez.

Ao vai-e-vem, assim como frutos já ocos prontos a cair, as árvores presenciam forçosamente a selvageria. Os corpos já estão podres, assim como as almas, que enfeitiçadas pelo lucro, ou pela indiferença ao diferente, penduram seres humanos nos troncos. O sangue, que antes passava pelos ductos dos galhos e escorria até o chão, já secaram. Nada nascia, ermo como a degradação humana. Negro, mestiço, escravo, a cantoria e os tambores da senzala se lamentam. Ora, tentam sensibilizar a casa grande, ora verbalizar a revolta.

Se era provação dos deuses tal humilhação? Não se sabe ao certo. Negros como Zumbi dos Palmares, Martin Luther King, Malcom X ou Nelson Mandela não se importaram muito com esta pergunta. Na luta, cada um ao seu modo, consolidaram o orgulho da raça negra. Apagaram de vez o dia da libertação dos escravos, a tal da Abolição da Escravatura, presenteado por uma princesa branca, em uma situação irremediável para a monarquia brasileira. A assinatura da princesa Isabel serve hoje como uma confissão de culpa, mas que se apodera da mais mesquinha esmola oferecida à quem já fora demais açoitado.

Aceita de bom grado, a lei vigorou no papel. Só no papel. Na sociedade, a cor ainda prevalecia como um ranso de superacia. A senzala só se disfarçou de cortiço, favela, ou barraco. As pessoas ainda consideram apenas o DNA. Aos poucos a ignorância e o preconceito dão lugar à igualdade. Tilza Maria Antunes, por exemplo, conseguiu se desvencilhar dos determinismos existentes na sociedade brasileira. Universitária, conseguiu frustrar as estatísticas. O Ipea aponta que dos brasileiros que ingressaram as universidades brasileiras, 97% são brancos, contra 2% de negros e 1% de amarelos.

Diferente do nome, a diversidade nas universidades ainda continua restrita ao tom de pele. E assim Tilza caminhava pelos corredores da Faculdade de Letras, onde concluiu o curso em 2001. Não como os primeiros negros norte-americanos a entrarem nas mesmas instituições que os brancos, mas de forma gradual, assim como a cultura da democracia racial no Brasil impõe. Rigorosa e sempre almejando mais, Tilza considerou como o momento mais marcante a defesa do seu mestrado em Lingüística e Literatura. Professora de língua inglesa e literatura na rede municipal de ensino em Goiânia, Tilza sabe da importância da educação. “Estudar sempre foi o meu instrumento de superação. As pessoas podem até me discriminar antes de eu abrir a boca, mas depois não tinham mais coragem”, dizia.

Como as peças do destino, daquelas de que como a cor, não há como escolher, o primeiro preconceito sofrido, ao menos o que lembra, aconteceu na escola. “Eu era pequena, talvez nove anos. Minha mãe havia ido buscar minhas notas na escola, daí a professora me elogiou. A mãe de uma outra menina estava perto e disse para ela. Está vendo minha filha, você não tem vergonha. Até esta menina preta tirou nota melhor do que a sua”.

Menina preta.
Este adjetivo acompanhado da menina tomou fortes proporções. Não por estas duas palavras. Nem pelo “menina”, muito menos pelo “preta”. Como uma lingüista, Tilza entenda que o “Até esta” pode denotar. Talvez na psicologia a cena ajude a compor toda a sua psique. A mesma psicologia que explique o fato de Tilza ignorar o rompante racista. Para ela, aquela senhora não significa nada. “É apenas uma coitada, uma ignorante”, diz sempre com o seu jeito firme, de quem não leva desaforo para casa. Com este mesmo jeito, se diz contra qualquer tipo de preconceito. Mesmo aquele que pode ajudar alguém. “Os negros tem realmente uma defasagem histórica, mas cotas não adiantaram. Mas a melhoria no ensino público, este sim, ajudaria muito”.

Opinião controversa e ainda bastante debatida. Mas sabe que a educação permeia a vitória independente da cor, raça ou credo. Aprendeu com o pai, nordestino, que os 13 anos saiu da cidade pequena a mando do pai para estudar na capital. Nunca tinha ido a uma escola. Foi morar na casa de um tio. Só que o tio o transformou em uma espécie de escravo. Escola, esta nunca viu, só trabalho. Até que quando ele fez 14 anos, a sogra do tio dele, costurou uma muda de roupa e o ajudou a fugir. Aí ele foi sozinho para o mundo. Fugiu como os negrinhos das senzalas para escapar das chibatas dos seus senhores. Só para ter a sensação de uma liberdade, que deveria ser inata ao ser humano, mas precisou ser conquistada.

Passou fome. Aprendeu a ler e escrever depois de adulto. Sozinho, numa cartilha que um amigo da igreja lhe deu. Nunca foi à escola. Mas eu não conheço ninguém que faça contas de cabeça melhor do que meu pai. Até hoje, Tilza Maria Antunes rememora a história, contada repetidas vezes pelo pai sempre como uma motivação para que os filhos não desistissem do estudo. Quando precisa, no momento da superação, a história vem sempre à sua cabeça.

Trilha: Dia Nacional da Consciência Negra - 20 de novembro