domingo, dezembro 03, 2006

Escravidão e preconceito

Em ritmo de blues, na voz melosamente triste de Billie Holliday, as árvores balançam como um leve sussurrar. As folhas, agitadas pelo vento, caem cálidas ao encontro do chão. As raízes expostas teimam a agarrar as profundezas. Flores não há. Estas já murcharam em uma primavera adversa. A copa frondosa quer apenas chamar a atenção dos céus. Raios e trovões, ao perceber a intenção, não se furtam em repreender o desatino. A escuridão toma conta, mas alguns raios de luz tentam compreender a estupidez.

Ao vai-e-vem, assim como frutos já ocos prontos a cair, as árvores presenciam forçosamente a selvageria. Os corpos já estão podres, assim como as almas, que enfeitiçadas pelo lucro, ou pela indiferença ao diferente, penduram seres humanos nos troncos. O sangue, que antes passava pelos ductos dos galhos e escorria até o chão, já secaram. Nada nascia, ermo como a degradação humana. Negro, mestiço, escravo, a cantoria e os tambores da senzala se lamentam. Ora, tentam sensibilizar a casa grande, ora verbalizar a revolta.

Se era provação dos deuses tal humilhação? Não se sabe ao certo. Negros como Zumbi dos Palmares, Martin Luther King, Malcom X ou Nelson Mandela não se importaram muito com esta pergunta. Na luta, cada um ao seu modo, consolidaram o orgulho da raça negra. Apagaram de vez o dia da libertação dos escravos, a tal da Abolição da Escravatura, presenteado por uma princesa branca, em uma situação irremediável para a monarquia brasileira. A assinatura da princesa Isabel serve hoje como uma confissão de culpa, mas que se apodera da mais mesquinha esmola oferecida à quem já fora demais açoitado.

Aceita de bom grado, a lei vigorou no papel. Só no papel. Na sociedade, a cor ainda prevalecia como um ranso de superacia. A senzala só se disfarçou de cortiço, favela, ou barraco. As pessoas ainda consideram apenas o DNA. Aos poucos a ignorância e o preconceito dão lugar à igualdade. Tilza Maria Antunes, por exemplo, conseguiu se desvencilhar dos determinismos existentes na sociedade brasileira. Universitária, conseguiu frustrar as estatísticas. O Ipea aponta que dos brasileiros que ingressaram as universidades brasileiras, 97% são brancos, contra 2% de negros e 1% de amarelos.

Diferente do nome, a diversidade nas universidades ainda continua restrita ao tom de pele. E assim Tilza caminhava pelos corredores da Faculdade de Letras, onde concluiu o curso em 2001. Não como os primeiros negros norte-americanos a entrarem nas mesmas instituições que os brancos, mas de forma gradual, assim como a cultura da democracia racial no Brasil impõe. Rigorosa e sempre almejando mais, Tilza considerou como o momento mais marcante a defesa do seu mestrado em Lingüística e Literatura. Professora de língua inglesa e literatura na rede municipal de ensino em Goiânia, Tilza sabe da importância da educação. “Estudar sempre foi o meu instrumento de superação. As pessoas podem até me discriminar antes de eu abrir a boca, mas depois não tinham mais coragem”, dizia.

Como as peças do destino, daquelas de que como a cor, não há como escolher, o primeiro preconceito sofrido, ao menos o que lembra, aconteceu na escola. “Eu era pequena, talvez nove anos. Minha mãe havia ido buscar minhas notas na escola, daí a professora me elogiou. A mãe de uma outra menina estava perto e disse para ela. Está vendo minha filha, você não tem vergonha. Até esta menina preta tirou nota melhor do que a sua”.

Menina preta.
Este adjetivo acompanhado da menina tomou fortes proporções. Não por estas duas palavras. Nem pelo “menina”, muito menos pelo “preta”. Como uma lingüista, Tilza entenda que o “Até esta” pode denotar. Talvez na psicologia a cena ajude a compor toda a sua psique. A mesma psicologia que explique o fato de Tilza ignorar o rompante racista. Para ela, aquela senhora não significa nada. “É apenas uma coitada, uma ignorante”, diz sempre com o seu jeito firme, de quem não leva desaforo para casa. Com este mesmo jeito, se diz contra qualquer tipo de preconceito. Mesmo aquele que pode ajudar alguém. “Os negros tem realmente uma defasagem histórica, mas cotas não adiantaram. Mas a melhoria no ensino público, este sim, ajudaria muito”.

Opinião controversa e ainda bastante debatida. Mas sabe que a educação permeia a vitória independente da cor, raça ou credo. Aprendeu com o pai, nordestino, que os 13 anos saiu da cidade pequena a mando do pai para estudar na capital. Nunca tinha ido a uma escola. Foi morar na casa de um tio. Só que o tio o transformou em uma espécie de escravo. Escola, esta nunca viu, só trabalho. Até que quando ele fez 14 anos, a sogra do tio dele, costurou uma muda de roupa e o ajudou a fugir. Aí ele foi sozinho para o mundo. Fugiu como os negrinhos das senzalas para escapar das chibatas dos seus senhores. Só para ter a sensação de uma liberdade, que deveria ser inata ao ser humano, mas precisou ser conquistada.

Passou fome. Aprendeu a ler e escrever depois de adulto. Sozinho, numa cartilha que um amigo da igreja lhe deu. Nunca foi à escola. Mas eu não conheço ninguém que faça contas de cabeça melhor do que meu pai. Até hoje, Tilza Maria Antunes rememora a história, contada repetidas vezes pelo pai sempre como uma motivação para que os filhos não desistissem do estudo. Quando precisa, no momento da superação, a história vem sempre à sua cabeça.

Trilha: Dia Nacional da Consciência Negra - 20 de novembro

5 comentários:

Ana disse...

Todos os dias tenho uma supresa nova... Como alguém pode conseguir crescer tanto em tão pouco tempo? É isso você vem se superando a cada dia e não apenas nos textos ou no trabalho. Mas, tb como namorado, amigo, no estilo, no jeito de lidar com as coisas.

Ainda bem que tenho você sempre ao meu lado

te amo

Fellipe Fernandes disse...

que lindo o seu texto... não há palavras em mim para expressar, apenas a eminência delas...
Abraço orgulho do amigo aqui.

Anônimo disse...

Hebert, tenho que ser sincero. Se não fosse seu blog, não reconheceria que este texto era seu. Está ficando cada dia melhor. Parabéns viu!!!

Eduardo Sartorato disse...

Fala baiano!! Kra, o texto ficou muito bom, parabéns!! Você o publicou em outro lugar?

Ou, passa lá no meu blog que dei uma reformulada nele!!

abraços!!

até mais!!

Anônimo disse...

Não tenho o que dizer!!!! Me orgulho cada dia mais dos meus queridos amigos... Queria escrever assim!!!! Adorei o texto... cheguei até a deixar algumas lágrimas rolarem em algumas passagens. Quando crescer quero ser que nem você!!!! Bjão, Baiano!!!!