quarta-feira, novembro 08, 2006

Por que não alisa esse cabelo?

De forma levemente contida, duas crianças pulavam. Não se importavam com nada. Não que fossem totalmente desavergonhadas. Simplesmente brincavam como qualquer um que tivesse a idade delas. Os pulos só não eram maiores pela impossibilidade física. Não tinham mais de 1,40 de altura. Magros, as cabeças sobressaíam ao resto do corpo. Voltavam da escola, por volta de 12h30. Ela ainda vestia o agasalho jeans, usado para abrigar o frio da manhã, com o uniforme branco. O tom negro da pele combinava com a tiara vermelha, que compunha o visual. Já o menino, sem tanta vaidade, vestia o uniforme branco com a calça jeans apagada além do tênis camurça já envelhecido.

Naquele minuto não olhavam para mais ninguém no ônibus. Só havia os dois em um diálogo diferente, de sorrisos e toques carinhosos. Como um pequeno beliscão no rosto do irmão, ou mesmo a proximidade, na hora dos pequenos pulos. Em poucos segundos, a iluminada cena não se alinhava mais com um pôr do sol. Mas com as sombrias tempestades. Já na primeira frase, uma senhora baixa, roliça, com os cabelos desgrenhados, saia rodada, e camisa cinza, fez com que aquele ônibus entrasse novamente na Idade das Trevas. “Por que não passa um creme nesse cabelo para alisar”, disse a senhora para a menina, com no máximo uns sete anos.

Encostada no eixo que une as articulações do ônibus que anda pela Avenida Anhanguera, a criança nada respondia, tampouco esboçava reação. O irmão, também paralisado, parecia não entender o que ocorria. Enquanto isto, a senhora continuava a desferir lições de beleza. “Fica mais fácil para pentear. Eu mesmo passo creme nos cabelos das minhas filhas tudo”, dizia. E logo depois disparou. “No salão eles tiram estes cabelos de piaçava tudo”, falava enquanto tentava olhar para o rosto da criança.

“Ela é linda”, retrucou o moço que estava do lado da senhora. Enquanto a senhora continua a disparar impropérios, o moço virava a cabeça, em sinais de desaprovação. As crianças, alheias à discussão, pareciam assustadas. "Ela é linda desta jeito, com este cabelo", continuava o moço. Enquanto a senhora, continuava a falar das maravilhas dos cosméticos. Pego aos pulos, em sobressalto, a cena me deixou paralisado. Também com sinais de reprovação, apenas disse que era um absurdo ela achar que para ser bonito é preciso ter cabelo loiro e liso.

Muito pouco. Queria aproveitar a cena para falar a todos do absurdo que aquela mulher dizia. A cena, um microcosmo social, demonstrava mais. A paralisia geral causada por tanto dispaltério. A vontade era de discursar ao estilo Martin Luther King. Mas para quê? A minha vontade era de mostrar aquela mulher o quanto ela estava errada. Mas para quê? Se no Brasil não há preconceito. Talvez eu esteja errado. Talvez deva me integrar ao que já está inscrustrado na sociedade brasileira. A maldita democracia racial.

Trilha: Eixo Anhanguera, perto da plataforma do Jóquei Clube

Um comentário:

Ana disse...

Amo meus cabelos loiros e lisos...
Mas, já tive vontade de ter cabelos cacheados.
É tão bela a diversidade, as pessoas não serem todas iguais a Ana Paula Arosio...
Se todos tivessem a mesma beleza, água com açucar, que graça teria?